[ Pobierz całość w formacie PDF ]

Por vezes o ato gramatical que confere o gênero feminino
a um ser magnificado no masculino é pura inépcia. O centauro
é decerto o ideal prestigioso de um cavaleiro que sabe muito
bem que nunca será arrancado de sua montaria. Mas que vem
a ser a centaura? Quem pode pensar na centaura? Meu deva-
neio sobre as palavras encontrou seu equilíbrio muito tardia-
mente. Enquanto lia, devaneando, esse dicionário das plantas
que é a Botanique chrétienne (Botânica cristã) do padre Migne,
descobri que o feminino sonhador da palavra centauro era a
centáurea. Pequenina flor, não há dúvida, mas sua virtude é
grande, digna do saber médico de Quíron, o centauro sobre-hu-
mano. Não nos diz Plínio que a centáurea cura as carnes des-
* Os quatro primeiros rios citados têm em francês o gênero feminino,
enquanto os dois últimos têm o masculino. (N. T.)
30 A POÉTICA DO DEVANEIO
conjuntadas? Ferva a centáurea com pedaços de carne e eles serão
restituídos à sua unidade primitiva. As belas palavras são já espé-
cies de remédios2.
Quando hesito em confiar ao papel semelhantes devaneios,
que no entanto me açodem freqüentemente ao espírito, ganho
coragem lendo Nodier. Nodier com muita freqüência sonhou entre
palavras e coisas, entregue à felicidade de dar nomes. "Há algo
de maravilhosamente suave nesse estudo da natureza que atribui
um nome a todos os seres, um pensamento a todos os nomes,
uma afeição e recordações a todos os pensamentos."' Uma suti-
leza a mais, unindo o nome e a palavra, e essa afeição pelas
coisas bem nomeadas provoca em nós ondas de feminilidade.
Amar as coisas em função de seu uso é próprio do masculino.
São pedaços de nossas ações, de nossas ações vivas. Mas amá-las
intimamente, por elas mesmas, com as lentidões do feminino,
eis o que nos conduz ao labirinto da Natureza íntima das coisas.
Assim, termino em "devaneios femininos" o texto tão simpático
em que Nodier reúne seu duplo amor das palavras e das coisas,
seu duplo amor de gramático e de botânico.
Naturalmente, uma simples desinência gramatical, um e mu-
do* qualquer acrescido a um nome que faz carreira no masculino,
nunca foi suficiente, na meditação do meu dicionário, para dar-
me os grandes sonhos da feminilidade. É necessário que eu sinta
a palavra feminilizada de ponta a ponta, investida de um femi-
nino irrevogável.
Que transtorno, então, quando, passando de uma língua a
outra, temos a experiência de uma feminilidade perdida ou mas-
carada por sons masculinos! C. G. Jung observa que "em latim
os nomes de árvores têm uma terminação masculina e todavia
são femininos"4. Esse desacordo dos sons e dos gêneros explica
até certo ponto as numerosas imagens andróginas associadas à
substância das árvores. Nesse caso, a substância contradiz o subs-
2. Seja-me perdoada a palavra centauro, pois Rimbaud pôde ver "as alturas
em que as centauras seráficas evoluem por entre as avalanchas" (Les illuminations,
Villes). O essencial é evitar imaginá-las galopando planície afora.
3. Charles Nodier, Souvenirs de jeunesss, p. 18.
* Marca do feminino em francês. (N.T.)
4. C. G. Jung, Métamorphoses de l'âme, p. 371.
DEVANEIOS SOBRE O DEVANEIO ' ' 31
tantivo. Hermafroditismo e Anfibologia se entretecem e acabam
por sustentar-se um ao outro nos devaneios de um sonhador de
palavras. Começa-se por falar errado e acaba-se no gozo da união
dos contrários. Proudhon, que quase não sonha, e que tira conclu-
sões precipitadas não tarda a encontrar uma causa de femini-
lidade para o nome latino das árvores: "É sem dúvida", diz ele,
"por causa da frutificação."3 Mas Proudhon não nos fornece de-
vaneios bastantes para nos ajudar a passar da maçã ao pé de
maçã, para fazer refluir o feminino da maçã até o pé de maçã.
De uma língua para outra, quantos escândalos não é neces-
sário atravessar, por vezes, para aceitar feminilidades inveros-
símeis, feminilidades que perturbam os devaneios mais naturais!
Numerosos textos cósmicos onde intervém, em alemão, o sol e a
lua parecem-me pessoalmente impossíveis de sonhar em virtude
da extraordinária inversão que dá ao sol o gênero feminino e à
lua o gênero masculino. Quando a disciplina gramatical obriga
adjetivos a se masculinizarem para associar-se à lua, um sonhador
francês tem a impressão de que seu devaneio lunar foi pervertido.
Em compensação, de uma língua a outra, que magnífica hora
de leitura quando se conquista um feminino! Um feminino con- [ Pobierz całość w formacie PDF ]

  • zanotowane.pl
  • doc.pisz.pl
  • pdf.pisz.pl
  • pumaaa.xlx.pl
  •